Monday, July 28, 2008

ecos de conversas ressoam-me no crânio
camisa aberta mais um botão para entrar o sol e o vento
arroz e viagem, atravessar o rio e dormitar

a esperança de que hoje já sou o outro, aquele que gostava de ser
e de quando em vez choco contra uma parede que me faz ver a cor do meu sangue e vejo quem sou, dorido e encolhido

há dias que sou uma ervilha pequena e verde
outros sou um balão cheio que baila ao sabor do vento agarrado ao dedo de alguém por uma guita fina quase invisível

Wednesday, July 23, 2008

boa viagem

A violência

Era mais ou menos frequente e normal ver pessoas magoadas ou feridas, doentes, amputadas, e por vezes mortas. Da mesma forma era algo quase normal ver alguém a bater em alguém: os pais nos filhos, familiares mais velhos a bater em mais novos, patrões a baterem em empregados, amigos a andarem à porrada por causa de mulheres ou por causa de qualquer outra coisa, mulheres a andarem à porrada por causa de homens, policias ou militares a baterem em miseráveis ou pobres indefesos.

Descobrir as brincadeiras com animais: para além das brincadeiras com algo velho ou mesmo com o lixo, as brincadeiras com os pequenos animais que existiam à nossa volta eram das melhores, mais divertidas e das mais sádicas diversões que tínhamos à disposição.

O peixe seco, ou a secar, que normalmente ficava em telhados de casas baixas, servia, entre outras coisas, para arremessarmos uns aos outros.

Os insectos: desde os louva-a-deus, até ás enormes baratas voadoras, passando pelas libélulas e pelas moscas e também pelos mosquitos, serviam para fazermos todo o tipo de judiarias de que nos conseguíssemos lembrar.

Entre outros animais maiores que agora não me recordo, haviam os gatos, os cães, os pintos, os patinhos e os frangos e galinhas, as tartarugas, os pássaros, os peixes dos escombros, que eram também vítimas da nossa mórbida intervenção. Desde lhes arrancar patas, até lhes atirar pedras, ou pizà-los, ou então enterrá-los, tudo valia.

Sim, lembro-me com alguma mágoa de ter morto dois gatinhos acabados de nascer à frente da sua inquieta e revoltada mãe, pizando-lhes a cabeça. Lembro-me de ter atirado as tartarugas de um vizinho contra pedras até sangrarem. Lembro-me de enterrar lindos patinhos, para descobrir, depois de os desenterrar, que haviam morrido.

Não era o único das crianças a fazer este tipo de crueldades, quer com animais, quer com outras pessoas. Jogávamos à pedrada, partíamos a cabeça uns aos outros.

Um dos meus principais companheiros de patifarias, o Sandro, por exemplo, atirou o seu lindo cachorro, ainda por cima o favorito dos dois cachorros irmãos que tinha, de cima do nosso prédio, do terraço. Isto para depois chorá-lo cá em baixo, com os vizinhos e outros curiosos à volta dos seus restos. O mesmo Sandro que comigo tentou cortar os fios do elevador na casa das máquinas do terraço. O mesmo Sandro que, tal como eu, chegou a andar à boleia pela cidade, ele com 5 anos e eu com 6, isto mentindo e dizendo: “a minha avó mora para ali”, ou “perdi-me da minha mãe, moro no bairro X”, e outras coisas do género.

A mulher “maluca”, aquela estranhíssima mulher com que nos metíamos, a insultá-la, às vezes até a puxar os poucos trapos todos rasgados que levava sempre vestidos, que, depois de ter dormido em tantos buracos sujos e no meio do lixo tantas vezes, acabou por ser levada, sem querer, por um camião do lixo, que a triturou. Lembro-me de isso ter causado alguma estranheza entre nós, às crianças da rua que a costumavam ver sempre pelas suas bandas.

O filho do homem que vendia mármore ao lado do nosso prédio (não me recordo do seu nome), que costumava brincar connosco, que perdeu as pernas num maldito engano do nosso elevador (normalmente não funcionava, e era também um sítio para nos brincarmos, e, daquela vez funcionou), e que nós, alguns de nós, ouvimos a gritar enquanto as perdia… Isso também foi algo forte.

A morte do pai do Adão e da Eva, casal de irmãos gémeos com que brincava muito, que era também pai de outro casal de gémeos, e de mais alguns filhos, doze no total. Este senhor vivia com a sua mulher e os seus doze filhos mesmo ao lado do nosso prédio, num simpática moradia, e acabou por morrer na praia de congestão, em frente da sua família, depois de ter salvo duas pessoas de morrerem afogadas. Isto também foi muito marado, não só para as crianças, mas também para os adultos, que gostavam muito de todos eles. Costumava brincar muito com os ditos gémeos, na sua casa: com os seus peixes, com as suas tartarugas, com os porcos que criavam, porcos esses que comiam os restos dos seus parentes cozinhados, coisa para mim algo estranha nessa altura.

Outra coisa nao muito vulgar foi o arremessar de um chumbo de pesca desde um terceiro andar até à cabeça de um gajo que não gostava, esse gajo era mais velho e costumava bater em alguns de nós, e acabou por nunca descobrir quem foi o culpado, e posso vos garantir que chorou e sangrou muito. Mesmo naquela altura não fiquei contente com o que fiz, muito menos agora.